Jordi Savall, Rotas da Escravatura
De todos os períodos negros da história da humanidade, há um de que pouco se fala, mas que se destaca pelo impacto que teve, tem e que perdura gravado no genoma humano. Em nenhum outro período histórico existiram tantas vítimas, tanta crueldade, com tantas e tão longas consequências para as gerações passadas, presentes e vindouras como durante os cerca de quatrocentos anos que mediaram o ano de 1492 e o de 1888 (ano da abolição da escravatura no Brasil). Nesse perído, vinte e cinco milhões de pessoas foram deportadas das suas aldeias, submetidas à condição de escravo, despojadas de personalidade e sujeitas aos mais ultrajantes tratos nas colónias dos países europeus. Durante esses perído - e nos anos que se lhes seguiram - vinte e cinco milhões de pessoas e os seus descendentes sentiram e sentem o veneno do preconceito racial, do racismo e da discriminação por terem ascendência africana. É o maior genocídio da história da humanidade, que o facto de apenas em 2001 ter sido reconhecido como tal em Durban, aquando da Conferência Mundial contra o Racismo não apaga. É uma história que toca toda a humanidade, sobretudo porque a escravatura ainda persiste nos nossos dias. O preconceito contra o outro continua a ser uma questão fraturante no momento atual de intolerância generalizada que o mundo atravessa perante o recrudescer dos nacionalismos e a crise do multiculturalismo. A forma como a questão dos refugiados tem sido tratada pelo Ocidente retrata ainda um passado por resolver à luz das modernas concepções que dotam a pessoa humana de uma dignidade longe da que lhe é reconhecida.
Foi perante este cenário que em 1994 a UNESCO lançou o projeto "a Rota da Escravatura" com os objetivos principais de quebrar o silêncio sobre a questão do tráfego negreiro e a escravatura nas mais diversas partes do globo, trazer à luz do dia as criações culturais nascidas ainda assim no seio dessa tragédia e contribuir para o aprofundamento e reflexão sobre o diálogo multicultural.
Uma das formas de libertação do escravo baseava-se na música, que lhe permitia expressar-se, libertar-se, reinterpretar as suas raízes e aproximar-se pela música e pela dança, dos demais escravos de origens tão diversas. As músicas e tradições das suas terras de origem associavam-se assim às duas seus companheiros de infortúnio e muitas vezes às dos seus captores, combinando-se em formas musicais que perduravam através do diálogo musical formas musicais hispânicas, africanas, brasileiras, mexicanas e caribenhas, por vezes com laivos românticos renascentistas e até do próprio barroco.
Foi neste ambiente e para homenagear aqueles vinte e cinco milhões de vítimas que Jordi Savall lançou esta magnífica obra a que diversos artistas de todo o mundo dão voz, num hino à sobrevivência, à liberdade e à esperança.
Jordi Savall exibiu este trabalho na Gulbenkian, na semana passada. A Antena 2 dedicou-lhe a programação do Império dos Sentidos do dia 13 de abril, previamente à apresentação do trabalho.