Em 1926, a irmã de Harry Leslie Smith morreu de tuberculose num asilo, a família era demasiado pobre para poder custear as despesas médicas. Em 1948, a criação do National Health Service (NHS) ou Serviço Nacional de Saúde ("público") colmatou a lacuna e deu esperança aos mais desfavorecidos num Reino Unido acabado de sair da Revolução Industrial, da Primeira Guerra Mundial e da epidemia da Gripe Espanhola. Harry acaba de publicar um livro, que é simultaneamente um grito de desespero face à legislação que a coligação no governo do Reino Unido acaba aprovar e que na prática representa um ataque ao sistema público de saúde.
A crise recente tem levantado o debate e o resultado tem sido quase sempre a redução do serviço público com a desculpa da falta de dinheiro. Não obstante essa ser uma realidade, o facto é que a criação do SNS é algo que nos últimos cem anos alterou o espetro da mortandade e da saúde dos europeus. Esta crise não deveria ser um pretexto para acabar com ele, mas antes para o aperfeiçoar e corrigir nas suas inúmeras falhas, a começar pelos que nele trabalham, a própria gestão e a educação dos utentes, de forma a consciencializá-los do bem escasso que a saúde e os tratamentos constituem.
Vale, pois, a pena dar o salto para a realidade portuguesa e determo-nos no que foi criado desde o início do Serviço Nacional de Saúde português (SNS) - que esta semana perdeu João Lobo Antunes - desde 1977. É dos melhores da Europa, para não dizer do mundo, e urge por isso defendê-lo. Foi isso que o jovem médico Francisco Goiana da Silva, de 24 anos, fez em Davos, no final de 2013, defendendo um SNS de qualidade para todos. Talvez por isso, ou não apenas por isso, optou por seguir carreira no Imperial College de Londres, a estudar gestão hospitalar e a tentar exportar o modelo do SNS para o mundo.
Nesta altura, importa fazer uma declaração de intenções: nada temos contra os esquemas ou sistemas alternativos de assistência à saúde (talvez exceção feita à ADSE, cuja utilidade e razoabilidade tenho dificuldade em compreender), mas estes não podem beliscar o SNS, nem atentar contra os cuidados universais e de qualidade a prestar a todos. Atacar isto representa conspirar a favor da alteração da estrutura e conceção do Estado Social criado no pós Segunda Guerra na Europa e, desde 1975, em Portugal e, naturalmente, requer ponderação. Mais ainda, requer aprovação da sociedade civil, por representar uma alteração do pacto social e dos princípios basilares da sociedade vigente.
Aos costumes, importa, antes de mais, pois, desfazer equívocos: estes valores, pelo facto de serem basilares, não estão ao dispor dos deputados nem dos governantes; pela essencialidade, pelo facto de serem o núcleo do Estado, qualquer alteração que se pretenda neles introduzir carece de ser referendada antes de poder haver sequer uma revisão constitucional, se é para aí que a intenção da maioria se dirige, por não serem valores livremente disponíveis. Sejamos, pois ainda mais claros: avançar um milímetro que seja em direção ao desmantelamento do SNS, constitui um atentado ao Estado Social e ao próprio Estado de Direito. Donde, é imperativo rever urgentemente a questão dos custos e da sustentabilidade, o que, concedemos, não é tarefa fácil. Nem coisa diferente seria de esperar. Mas é essa precisamente a tarefa e a extensão do mandato do Governo e não desmantelar ou cortar a eito no SNS.
Desfaça-se portanto o equívoco: o mandato concedido pelos portugueses é o de bem gerir a res publica, sem alterar a sua natureza. Melhorar não pode querer dizer alterar sem mandato e isso tem de ser bem claro, uma vez que o Pacto Social celebrado entre o Estado e os indivíduos para cuidar destes valores não tem prazo de caducidade.
Afastem-se desta forma quaisquer equívocos em relação ao papel e à extensão do mandato de um político em democracia, para não chegarmos ao ponto de termos de fazer a pergunta que é ao mesmo tempo o título do livro de Harry Leslie Smith.