Ainda sobre Haevnen, que revisitei no fim de semana: tinha visto o filme, em excertos, em Julho e na altura interpretei-o como algo que oscila entre a vingança e o perdão, a tolerância e o seu contrário. Mas depois os noruegueses tiveram o seu 22 de julho, o mundo redescobriu a intolerância (de que se esquece de vez em quando exceto quando se manifesta dentro de fronteiras dos países do primeiro mundo) e a realidade nórdica retratada por Susane Bier saltou da película para o centro de Oslo e daí para a pequena ilha de Utoya. As tensões sociais que florescem nas franjas da sociedade (Anton e a família são suecos na Dinamarca e há sempre quem lhes recorde esse facto) transparecem nos mais pequenos detalhes do filme. O multiculturalismo, como bem sabemos desde 22 de Julho, não é uma utopia, também não é uma realidade adquirida. Pelo contrário, está em construção e num patamar menos avançado do que se pensava, para não dizer ainda embrionária.
A própria Europa, refém de uma luta de poderes, vem demonstrando isso à saciedade, permitindo a infiltração e o embaciamento por aquela luta do eterno diálogo - ou antes falta dele? - entre Norte e Sul. Onde estão, pois, o multiculturalismo, a tolerância, a social-democracia, a justiça, em última análise, a própria democracia individual, passe a redundância, de cada indivíduo na construção desse mundo melhor que Haevnen propala? É legítima a pergunta, mas não pacífica a resposta: estaremos a deixar subjugar o direito ao poder, dando razão às concepções do realismo escandinavo tal como preconizado por Miguel Reale ou Ludwig Wittgenstein, permitindo a instrumentalização dos valores em ordem à obediência ao poder, protegendo este e elevando-o a valor fundamental?
Evidentemente, depois de 22 de Julho, a sociedade norueguesa ao repudiar os ataques, uma vez identificada a fonte, parece ter encetado um arrepiar de caminho. Mas o certo é que não foram (nem podiam) ser banidas as ideologias das franjas. Nada disto anda, afinal, muito longe do excelente ensaio "Identidades Assassinas" (ainda muito atual) de Amin Maalouf. Ainda que aplicado aos ódios que grassam nas sociedades muçulmanas, os extremos, como sempre, tocam-se. E é nesta realidade (não confundir com realismo) que aparentemente se jogará o futuro da Europa. A crise de valores contaminará o poder, ou a sociedade saberá defender-se, impondo-os aos poderes que os tentam submergir?
Em Haevnen, Susane Bier não procurou ir tão longe. Mas numa Europa que por vezes olha para a Escandinávia como exemplo, faz sentido perceber que a perfeição não mora ali. Nem aqui, evidentemente.