12 de outubro de 2008

Entre el amor y yo
se levantan mil paredes
y el mar
resulta muerto y sin recuerdos
como la ausencia de una mirada
o una palavra borrada.

Marrocos em Silves

Adalberto Alves, Presidente do Conselho Geral do CELAS (Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves), foi há dias agraciado com o prémio Sharjah 2008 para a cultura árabe, distinção conferida pela UNESCO, que pretende desta feita premiar os que revelam significativo contributo para o desenvolvimento e promoção da cultura árabe no mundo, bem como pelos esforços desenvolvidos em função da sua preservação e revitalização. Adalberto Alves já publicou algumas compilações de poemas de poetas árabes, algumas das quais são de tradução da sua lavra.
A mostra Marrakech em Silves tem vários pólos de interesse, mas todavia destaca-se no programa a exposição de fotografia «Olhares Vizinhos», que retrata Silves através do olhar de Hassan Nadim. A mostra fotográfica incluirá um conjunto de 41 imagens feitas por este artista marroquino e terá a sua apresentação pública na Igreja da Misericórdia de Silves, dia 11 de Outubro, às 16h00. Os comentários a estas imagens, que farão parte do catálogo da exposição, são feitos por Rocha de Sousa, investigador e artista nascido em Silves, que traduz por palavras, a sua forma de olhar para os “olhares” de Hassan Nadim.
A exposição «Arte Islâmica: técnicas decorativas do Reino de Marrocos», da autoria do arquitecto José Alegria, que tem estado presente na Casa da Cultura Islâmica e Mediterrânica de Silves, também foi ampliada e valorizada com novas peças expositivas provenientes de Marraquexe, nos vários domínios das artes decorativas (azulejaria, madeira, metais, “gebbs”, “tadlakt”, “dess” e tecelagem da lã).

10 de outubro de 2008

9 de outubro de 2008

8 de outubro de 2008

Vislumbres [de poemas passados]
meandros, esteios e ravinas calcinados
que recuso percorrer...

O dia nasceu cinzento em Arles. Xavier acordou e na penumbra do quarto sentiu a forte presença da ausência de Clara. Pela forma esvoaçante dos cortinados pressentiu-a lá fora, na varanda empedrada e levantou-se, caminhando em direcção à saída para o exterior. Clara dormitava encolhida sobre uma espreguiçadeira, coberta por uma manta finamente bordada por gotas de orvalho, que a defendia igualmente da escassa claridade possível cuja passagem as pesadas nuvens baixas apenas permitiam com cerimónia. Pegou na mão de Clara e sentiu-a abandonada e fria. Sentou-se na espreguiçadeira ao lado, contemplando o rosto da mulher que amava. Sentiu uma imensa ternura por ela, mas percebeu igualmente o abandono naquela mão adormecida... olhou para a carteira vazia de comprimidos pousada na mesa de apoio. O copo de água igualmente vazio. Pegou em Clara ao colo e penetrou na penumbra do quarto, amparando-lhe a cabeça no ombro e deitando-a em seguida na cama. Transpirava. Com uma toalha húmida enxugou-lhe a face e a testa. Mandou servir o pequeno-almoço no quarto e passou a manhã a trabalhar em silêncio, consultando anotações e revendo apontamentos, desviando por instantes o olhar na direcção de Clara, ou levantando-se ocasionalmente para lhe ajeitar o travesseiro quando esta mudava de posição na cama. Perto das três da tarde aproximou o rosto da boca da mulher e sentiu-lhe o odor inebriante da respiração profunda. Tocou-lhe a testa com os lábios, escrevinhou uma mensagem num rasgo de papel que colou no espelho e saiu silenciosamente depois de pendurar o essencial do not disturb na maçaneta exterior.
Prolongou os passos em pontas de pés pelo corredor e apenas normalizou a respiração quando entrou no patamar do piso abaixo do que ocupavam. Já na rua, olhou ainda para o parapeito da varanda e afastou-se rapidamente, diluindo-se no movimento da tarde que se adiantava, ameaçando chuva grossa.
Não teve dificuldade em encontrar a morada que lhe fora dada na noite anterior pelo músico. Era um edifício antigo, estreito, de três pisos encimado por uma água-furtada, situado numa rua secundária, sem trânsito, que visto do exterior apresentava um aspecto pouco cuidado contrastando com os edifícios vizinhos. A fachada amarela desbotada era contudo uma nota de destaque por comparação com as cores discretas empregues nas demais casas na rua. Xavier confirmou a morada e aproximou-se, espreitando discretamente pela penumbra da janela ao nível da rua, sem que avistasse vivalma, ou distinguisse alguma coisa no interior. Fechou a mão e aprestava-se para bater na porta maciça de carvalho, quando esta se abriu exibindo o semblante sorridente de Jan Hoecht:
- Entre Xavier, aguardava-o. Vejo que está sozinho.
Pareceu desiludido.
- Clara está cansada, esteve a pé a trabalhar a noite inteira, optou por ficar a descansar. Pede desculpa, mas não estava em condições. E este clima... - desculpou-se Xavier.
- É verdade! Encharca-nos os ossos. Não obstante, nem sempre é mau, por vezes inunda-nos de alegria, sobretudo quando a lavanda floresce... já viu os campos de lavanda Xavier?
Xavier Dias oscilou a cabeça de um lado para o outro.
- É o paraíso Xavier. Do lado de lá do Reno falta-me isso. Coisas que me ficaram da infância. Suponho que me entende? Sabe? Van Gogh não resistiu ao encantamento da lavanda. Diz-se inclusivamente que pintou centenas de quadros dos campos de lavanda em redor de Arles, enlouqueceu, gastou todo o dinheiro que tinha em tintas, pincéis e telas. E para não lhe chamarem louco diz-se que escondeu tudo numa gruta dos arredores. Consta igualmente que um coleccionador de arte sabe dessa gruta e não revela os trabalhos para manter a cotação dos quadros. Já imaginou a catástrofe para o mercao de arte se isso acontecesse, Xavier?
Desta vez a resposta foi afirmativa. O olhar de Xavier no entanto atraíra-se na direcção de um enorme painel pintado que cobria uma das paredes do primeiro piso, no qual haviam sido derrubadas todas as divisórias entre as salas.
Jan afastou-se e acendeu uma luz ao centro que inundou de cor a obra, que pareceu ganhar vida.
- É espantosa, Jan. É sua?
O músico riu-se:
- Se tivesse esse tipo de talento nunca seria músico Xavier. Cada um nasce para o que está talhado. Eu limito-me a fazer os possíveis por conservar esta pintura, mas não fui agraciado com o dom. Foi-me pedido pela minha mãe que a conservasse para sempre, fez-me prometer-lhe que o faria, mesmo antes de morrer. Ali, naquela cama que vê ao canto da sala.
Apontou na direcção de um leito estreito de ferro enferrujado na parede oposta ao quadro, ao lado do qual havia uma humilde mesa de cabeceira com pés enegrecidos pela humidade que subia do solo, sobre o tampo da qual jaziam dois livros amarelecidos e uma lâmpada de latão fazendo as vezes de candeeiro. Continuou:
- Perguntou-me por Sevlak. É dele a pintura. Um génio amaldiçoado pelo seu talento. Pintava. Escrevia. E compunha. Genial em qualquer domínio. Efervescente, digo-lhe mesmo. Mas por isso mesmo, intranquilo. O dia não lhe chegava para se esgotar. Não tinha horas. Esquecia-se de comer, de tomar banho, de mudar de roupa. Pintava horas a fio e depois sentava-se a escrever. Música, poesia, narrativas, em ciclo ininterrupto. Que por vezes destruía por achar que não eram suficientemente geniais. Escreveu centenas de peças, fez milhares de esboços, mas destruiu tudo, sobrou muito pouco. Não me esqueço do dia em que apareceu aí. Eu era adolescente, teria uns quinze ou dezasseis anos. A minha mãe apresentou-mo. Dizia que tinha tido uma visão, uma ideia fabulosa, a obra-prima. Pediu para ficar e ela deixou-o.
Xavier aproximou-se do centro da sala, contemplando detalhadamente os elementos da pintura, quase lhe roçando os dedos, como se as partículas do ar reflectissem a textura das cores.
- Dir-se-ia Vermeer...
- Sim, percebo o que quer dizer, Xavier. Conheço cada detalhe desse maldito quadro. É genial, mas para mim a promessa que fiz é uma maldição e vejo-o mais sob esse prisma. Conservá-lo é um imperativo, pela promessa que fiz, mas sobretudo porque sei que não existe igual. Nem a Vista de Delft se lhe equipara... Se quiser, é uma questão de consciência, um imperativo ético, que não deixa de me aprisionar, nem me perimite adormecer, como se fosse um pesadelo onde não me pudesse permitir acordar, sobretudo porque odiei Sevlak. Passava horas a pintar, a misturar cores, a apurar, a fazer, a desfazer e a refazer cada detalhe, ignorando o mundo, ou melhor, antes procurando aprisioná-lo neste pedaço de mural. Está a ver a Vaidade, naquele canto?
Jan apontou para uma mulher magra de olhar cadavérico que evocava ligeiramente a Judith de Klimt. E prosseguiu:
- Andou seis meses pela província à procura daquele olhar. Atrasou a obra. Nenhum lhe pareceu suficientemente bom, ou deverei antes dizer suficientemente mau? - disse em tom irónico.
- A vaidade?
- Sim, trata-se de um retrato dos sete pecados capitais, Xavier, embora, provavelmente não tenha reparado, dado que existem oito personagens no quadro, sete mulheres e um homem.
- A personagem de costas?
Jan anuiu.
- Sevlak? - perguntou Xavier.
Nova afirmação:
- O diabo em pessoa, a tentar expiar os seus pecados numa obra magistral. Dois anos de trabalhos forçados a ouvir Die Sieben Todsünden. Não sei se conhece a obra...
- De Kurt Weil?
- O próprio, com textos de Bertolt Brecht. Suponho que se conheceram em Berlim, conhece a obra Xavier?
- Vagamente, sim.
- De modo que durante dois anos Erik Sevlak se fechou neste pardieiro a fazer a obra-prima com que expiaria os seus pecados capitais. Alicerçado na composição de Weil e nos poemas de Brecht, estes seriam ilustrados pelo seu quadro. A experimentação máxima do tom da cor, ou do timbre da cor, uma teoria explorada por Kandinsky que fez escola junto de alguns autores alemães e russos. Sevlak foi contagiado pela teoria. Andou obcecado com a ideia e afinava o som da grafonola como se este fosse mais um item na mistura das cores.
- E os livros, Jan?
- Tem razão, que esquecimento o meu. Como creio que saberá, Sevlak escreveu alguma coisa e publicou alguns trabalhos, temo que sem grande sucesso. Creio que vivia da caridade do editor, que o explorava, dado que Sevlak apenas se preocupava a partir de determinada altura em poder comprar novos materiais para criar cores e pinturas, ou partituras de cores, como gostava de dizer. mas desculpe-me, divagava... Ah sim, guardo alguns exemplares publicados nas águas-furtadas. Venha, cuidado com o terceiro degrau, a ver se na próxima vez que vier a Arles me ocupo dele. Nunca tenho tempo, ou não me lembro de tratar disso, sabe, raramente venho aqui acima, acho que o fantasma do velho Sevlak assombra esta casa e prefiro não tropeçar nele, pelo que lhe deixo o sótão. É um bom acordo, evito ir ao sótão, dividimos o espaço e assim tudo corre bem. Passe adiante, por favor. Espere um instante, eu acendo-lhe a lâmpada. Espero que o fantasma do velho esteja a dormir a sesta. Foi um hábito que lhe ficou de quando viveu em Espanha, por uns tempos. É o que me vale quando preciso de aqui vir livrar-me de umas teias de aranhas e do excesso de pó.

De Manhã Em Berlim

Acordei. Era Berlim. Pela janela
vi o coração desdentado,
a louca sepultura,
a cinza,
as ruínas mais pesadas,
com florões e frisos
gravemente feridos,
balcões arrancados a uma negra mandíbula,
muros que já perderam, que não encontram
as suas jaelas, as suas portas,
os seus homens, as suas mulheres,
e uma montanha dentro de escombros empilhados,
sofrimento e soberba confundidos
na farinha final, no moinho
da morte.

Oh cidadela, oh sangue
inutilmente desparecido,
esta é talvez, esta é
a tua primeira vitória,
ainda entre escombros negros
a paz que conheceste,
limpando as cinzas e elevando
a tua cidadela para todos os homens,
tirando as tuas ruínas
não os mortos
mas o homem comum,
o novo homem,
o que edificará as estruturas,
do amor, da paz e da vida.

Pablo Neruda, excerto de O Sangue Dividido

7 de outubro de 2008


A noite cálida não permitiu que Consuelo pegasse no sono. Talvez porque o colchão macio da espreguiçadeira fosse demasiado confortável ou porque o toque suave da manta acariciando o seu rosto a fizeram recordar a sua infância remota. Feliz. Ou pelo menos recordava-a assim. Aprendera a recordá-la assim. Richard dormia no quarto. De onde estava não o via, mas conseguia sentir a sua presença. O dia fora extraordinário, maravilhoso, arrebatador. Ele surpreendera-a com uma viagem, um jantar maravilhoso, num dos melhores restaurantes de toda a Espanha e agora um hotel perfeito. Nada falhara nessa noite, nem o brilhante que lhe oferecera quando a pediu em casamento imediatamente após a sobremesa e ela não conseguira balbuciar uma resposta, pois fora imediatamente felicitada por Julian, o chefe de sala.
Os últimos dias deslizaram pelo seu pensamento à velocidade estonteante da luz e imediatamente a seguir vieram as recordações dos últimos anos e depois o flashback de toda a sua vida, assim despertada pelo toque aveludado daquela manta. A infância feliz, interrompida pela separação de seus pais, a rebeldia como revolta pela perda da referência paterna, as amizades, as companhias menos recomendáveis, uma adolescência em desnorte vivida num fôlego, na companhia de artistas que gostavam de achar que se davam com a nata da sociedade mundana, de quem sorviam alguns trocos com que se entregavam à boémia nas calles. Achou que era um deles e na primeira gravidez, seduzida numa festa por um respeitável senhor, percebeu o seu engano. Sozinha, prostituiu-se numa festa decadente convidada pelo respeitável senhor, a fim de obter o dinheiro para o desmancho, que fez em Londres. E depois um respeitável jovem, novo desmancho, como então se dizia, mas dessa vez o dinheiro fora-lhe dado pela respeitável mãe do respeitável jovem de ilustres famílias, com um promissor futuro à sua frente na condução dos negócios de família e um casamento aprazado desde longa data, com uma jovem de sangue azul, ou cor parecida. Um amigo socorreu-a e deu-lhe trabalho numa galeria em Londres nos tempos que se seguiram. Perdeu-se no nevoeiro da city e lavou pratos, uma ocupação melhor remunerada e de resto tão boa como outra qualquer para acalmar um estômago vazio e uma alma moribunda. Regressou a Sevilha. Os que conhecera outrora olhavam-na então como uma balconista de loja e nas recepções que frequentava como empregada, ou a que assistia do lado de fora de uma montra, por vezes fingiam que a reconheciam quando lhe pediam uma flute de espumante barato ou um canapé, ou lhe acenavam com pena. Um dia alguém reparou nela, na inauguração de uma exposição do pintor Francisco Falcón, então na moda. Conheceu alguém, um rico senhor, investidor imobiliário, dizia-se, e também comerciante de carnes de passado obscuro e pleno de garbo, que a desposou em segundas núpcias depois de se separar da sua primeira mulher, destruída física e emocionalmente. Raúl Jimenez. Haviam-lhe raptado um filho, Artur, por causa do passado obscuro do pai, um passado sobre o qual Raúl nunca quis falar, mas que se descobriu ter algo de comum com o pai de Javier Falcón. Javier. Com este encontrara o rasto de Artur, no Norte de África. Artur tornara-se já então um homem próspero, fora adoptado pelo raptor e pelo rancor e por este renegara o pai e o seu país depois de se aperceber que nenhum dos dois se preocupara em encontrá-lo durante toda a juventude. Fizeram amizade com Javier Falcón. Javier, o inspector jefe acabara de reentrar nos seus pensamentos, na noite em que devia estar feliz. Richard dera-lhe o que ela, Consuelo, queria ter tido toda a sua vida. Uma noite de sonho e paixão sincera. Limpou com as costas da mão esquerda a lágrima que escorria pela sua face e escondeu os olhos na dobra da manta, ao mesmo tempo que encostava a cabeça para trás. Suspirou. E desatou o turbilhão da sua alma: odeio-te Javier Falcón, por não me teres sabido amar como eu precisava. Por te teres afundado nos teus problemas, nos teus casos de polícia, nos teus mortos, no teu trabalho. Odeio-te pelas teias de aranha que tens na cabeça e pela maior ainda que tens na escada de acesso à açoteia principal da tua casa, que nunca te lembraste de remover. Odeio os teus sapatos, que calças sempre, dia após dia. Odeio as tuas idiossincrasias, a tua forma de ver o mundo, como se fosses um estranho no mundo e não lhe pertencesses. Ou simultaneamente como se estivesses em casa em qualquer lugar recôndito e inóspito. Quem me dera não ter atravessado o rift contigo montada no dorso daquele horrível camelo, ou dromédário, ou o raio que o parta, ou nunca ter deitado a cabeça no teu ombro, ou ter sonhado que o mundo não era suficientemente grande. Odeio-te Javier Falcón. Estás a ouvir-me? Odeio-te. Por não teres percebido que eu só queria ter sido uma criança, que não me tivesses tratado como uma criança, a tua criança, por uns breves instantes. Queria isso. Muito isso. E só depois crescer. Maldito sejas Javier, por te ter amado tanto que julguei que ia explodir. Malditos sejam os teus olhos, que me vararam profundamente, me despiram, me expuseram e me fizeram vacilar nos meus alicerces. Eu sou forte, ouviste? Como te atreveste?
Ouviu Richard virar-se na cama. Silenciou os seus pensamentos, levantou-se e olhou pela o horizonte, onde a claridade da manhã despontava. Sentiu-se confinada no espaço amplo da varanda que deitava sobre o Mediterrâneo. O Mediterrâneo, com o qual e pelo qual tanto sonhara, versejara e consumira horas de poesia. E agora não se conseguia desligar dos mortos dos barcos clandestinos que o atravessavam, dos negreiros, das gentes subsaharianas de Mellila que vivem enclausuradas nos campos aguardando a deportação ou a passagem para a Europa. Javier trouxera-lhe isso também, nas conversas em frente à lareira de pedra, ou deitados sobre o tapete da tijoleira depois de fazerem amor, enquanto ainda tinham a pele transpirada. Mazelas do mundo. Um mundo que ela aprendera a pintar com todas as cores da ave-do-paraíso, mas que afinal também podia ser cinzento e negro. Os seus passos de ansiedade eram ritmados, por sobre o pavimento de madeira, silenciosos como os da fera enjaulada. Acalmou-se por fim e deitou-se novamente na espreguiçadeira, onde o cansaço da noite e a brisa da aurora a embalaram por fim.

6 de outubro de 2008

Maria João ist ein Berliner

Maria João Pires vai interpretar Mozart, em Berlim, com a Berliner Philharmoniker, nos dias 8 a 10 de Outubro. Seria imperdível, claro, se Berlim fosse já ao virar da esquina.

W.A. Mozart Kv.466 concerto n. 20 em Ré menor, II e III mov.

M. João Pires, Berliner Philharmoniker e Pierre Boulez

Mozart compôs este trabalho em 1785 e a primeira execução pública do mesmo foi em Viena nesse mesmo ano, tendo a orquestra sido dirigida pelo próprio compositor. Leopold Mozart, o pai, escreveu à filha, Maria Anna, o seguinte, após ouvir a peça: "Ouvi um excelente concerto de Wolfgang, no qual o copista ainda trabalhava quando chegámos e o teu irmão nem sequer teve tempo de ensaiar o rondó porque teve de supervisionar a cópia das partituras."

O concerto divide-se em três movimentos, sendo o primeiro Allegro, a que se sucedem Romance e Allegro Assai, habituais em Mozart e nas composições à época. O tema principal é abordado no primeiro movimento, sendo repetido no segundo e também no terceiro, variando embora o tom, que no segundo movimento passa a Si maior e a Sol menor, antes de evocar novamente o tema principal com que termina a peça. No terceiro movimento assume-se definitivamente o rondó a que se refere o pai Mozart, no tom dominante do concerto, que termina com um vibrante solo de piano, repetido pela orquestra num poderoso e surpreendente Ré maior.

A versão reproduzida acima, interpretada por Maria João Pires tem como pano de fundo os Jerónimos e corresponde a uma versão do concerto com arranjo do maestro, escritor e ensaísta(1) Pierre Boulez, sendo a orquestra conduzida pelo próprio (note-se a ausência de batuta, que é uma [sua] imagem de marca).

(1) v. "Schoenberg est mort"

Quarteira, entardecer em 4 de Outubro 2008
(obrigado Carlos)

4 de outubro de 2008

Mónica Pais

Em Maio deste ano tropecei por acaso no Festival Cistermúsica, em Alcobaça. No Mosteiro decorriam ensaios para algumas das peças a apresentar nessa noite. Uma voz no entanto se destacava. Desconhecida para os meus ouvidos, mas felizmente o acaso tem destas coisas e aquela voz levou-me a persegui-la até onde estava; um acaso feliz trouxe-me assim a um encontro fortuito com Mónica Pais quando entrei numa das salas visitáveis. Um arrepio. E acabou o ensaio. Apenas tive oportunidade de ouvi-la fugazmente numa outra ocasião, na rádio (creio que na Antena 2), mas este fim de semana encontrei uma página com algo mais sobre este talento nacional, senhora de uma voz ide soprano invulgar. Estou convertido.

3 de outubro de 2008

The sounds of colours

(Fundação Joe Berardo)

and the colours of sounds

Disco 1. Play. Som. Imperfeições. António Pinho Vargas. Rewind. Memórias. Brinquedos, Tom Waits, Dança dos Pássaros, Alentejo, La Corazón (lento e acelerado), "não sou nenhum compositor, sou apenas um músico" dizia Pinho Vargas há não muito tempo numa entrevista breve remontando a 2002. Pausa. Antes Stop. E eject. Insert. Agora o Disco 2. Close. Play. Imperfeições parte dois. E? "bem, afinal, talvez, quem sabe?..." diz o músico já na recente condição de auto-assumido compositor, em 2008. Finalmente. E de facto. Percebe-se agora o alcance da afirmação feita em 2002. António Pinho Vargas tinha ideias claras sobre onde queria chegar e amadureceu-as. Esperou. Soube esperar. Soube fazer-nos esperar. Bem, diga-se, como convém, e fez questão de comprová-lo neste novo trabalho, onde as primeiras composições ombreiam com as mais recentes tornando evidente o percurso e a evolução do "simples" músico para o maduro compositor. E se não havia, dizemos nós, necessidade, é evidente que estavamos redondamente enganados. A erudição na música de Pinho Vargas intensificou-se (a complexidade do Movimento Parado das Árvores é um exemplo), elevou-se e atingiu um patamar apenas ao alcance de alguns - poucos - eleitos. Nada Obscuro nem Nebuloso, reforce-se, em Pósludio, nesta simples e primária apreciação. E agora? Será o céu o limite? Qu' importe? Por ora, música, Maestro! com todas as Imperfeições que desejar. E perdoe-se-nos o minimalismo da apreciação.

29 de setembro de 2008

Ryuuichi Sakamoto

(Rain)

L' art c' est le vice. On ne l' epouse pas légitimement, on le viole.

Edgar Degas

O projéctil entrou um pouco abaixo da epiglote e saiu por trás, acima da nuca. Restos do cérebro de Diogo Cuadril espalhavam-se pelo chão e na parede por trás da cadeira. Uma imensa poça de sangue alastrava no solo, encharcando o tapete granadino que revestia o mosaico hidráulico. Os olhos do comisario fitavam um lugar distante para além da parede à sua frente e se há quem diga que o último olhar de um morto grava a derradeira imagem que contempla, o olhar de Cuadril podia dizer-se à primeira vista que era o de um homem assustado com algo que provavelmente não existiu para além do instante em que a arma detonara a única cápsula alojada na câmara daquela 9.5. Estranha arma. Não era nenhuma das disponibilizadas pelo corpo policial, nem mesmo para a defesa pessoal dos membros superiores da instituição. E no entanto estava firmemente segura pela mão esquerda de Cuadril, poisada no braço esquerdo da cadeira.

- Investigue-me a proveniência da arma - pediu Javier Falcón - e sobretudo não lhe toquem, por enquanto.

- Suspeita de alguma coisa, inspector jefe? aventurou Cristina Ruiz.

- Não. Por enquanto não, ou suspeito de toda a gente - respondeu Javier Falcón enquanto contemplava o orifício de entrada do projéctil. Este estava limpo, com uma circunferência perfeita e com rara pigmentação de pólvora. A vida corria bem ao comisario pensou, enquanto lhe mediu a olho o perímetro do estômago. Tinha engordado bastante e a proeminência das vísceras era notória, acentuando o seu aspecto viscoso de réptil .

Quando terminou descalçou as finas luvas de borracha, que depositou numa bandeja estendida por um dos auxiliares. O médico legista chegara e aproveitara para lhe trazer o relatório de autópsia dos dois homens encontrados nesse dia no porto. Este confirmava que ambos tinham morrido em consequência do choque, apesar da gravidade dos ferimentos, mas trazia uma novidade de que ninguém se havia apercebido: no estômago e no esófago de cada um dos cadáveres alojavam-se respectivamente trinta moedas de um euro. Instintivamente e sem pensar duas vezes, olhou para o comisario desviando o olhar dos olhos deste, enquanto procurava o que encontrou sem custo nem surpresa: por baixo da camisa desabotoada de Diego Cuadril sentiu a frieza metálica das moedas alojadas no estômago deste. Deixou-se cair numa cadeira, enquanto sentiu um arrepio conhecido a percorrer-lhe as costas. Acabara de se aperceber que Diego Cuadril não era um homem canhoto. O rato do computador estava à direita do teclado.

28 de setembro de 2008

26 de setembro de 2008

Quando ouviu a respiração pesada de Richard, Consuelo puxou lentamente pela ponta do lençol e destapou-se, procurando na obscuridade do chão a roupa em desalinho. Certificou-se que o homem a seu lado dormia e contemplou-lhe as feições angulosas. O luar penetrava a custo pelas frestas das cortinas. Magneticamente, coseu-se com as sombras e com passos meticulosos enfiou-se na banheira, fitando longamente a água a esgotar-se pelo ralo escancarado. depois de percorrer o seu corpo. Quando o calor do vapor lhe penetrou na pele, Consuelo enrolou-se no roupão branco, que retirou de uma prateleira por cima de um armário baixo, desdobrou-o em silêncio, envolvendo-se nele, deslizando em seguida para a varanda revestida em lâminas macias de madeira. Procurou uma chaise longue inundada pelo luar e alcançou uma manta enrolada num cesto de vime. Deitou-se e cobriu-se com a manta em lã macia, enrolando-se em si própria, como o fazia em criança, quando ouvia os adultos a discutir na sala, debaixo dos lençóis. Os gritos esta noite eram contudo seus, somente o luar era estridente, mas Consuelo sentiu os tímpanos a latejar.
Os teus lábios
um hálito perdido
nesta tarde dourada
de estrofes em degrau
poemas com pontos, vírgulas
polvilhados de cês com cedilhas
flutuando leves, em versos
como gotículas no Aar.
Palavras assim. Ditas
num hálito perdido
dos teus lábios.