2 de março de 2009

Em dia de lançamento de novo album dos U2, uma recomendação

Africa Celebrates U2 - Pride (In The Name Of Love)


Billboard Magazine: "A rare beauty" (Ver mais)
Giant Step: "Pays tribute to the music, culture and future of Africa" (
Ver mais)


Stand By Me: play for change around the world

Boa semana!

Uma curiosidade


Há coincidências que não lembram ao próprio diabo. No dia 20 de Fevereiro, sem me ter predisposto a isso, mas apenas porque o pensamento le levou para aí, escrevi um post dedicado a Mano Dayak, o tuaregue que lutou pelo reconhecimento dos direito do seu povo. Não maliano ou do Níger, mas tuaregue, que é uma nação própria, de gente nómada e livre do deserto, porventura o povo com o espírito mais livre do mundo. Mano Dayak, para além de ter estudado na Sorbonne e de ter lutado pelos direitos do seu povo, foi igualmente um conhecido guia de homens, sempre ansioso por dar a conhecer os costumes e hábitos dos seus, tendo para isso fundado uma empresa de viagens e excursões de aventura na África sahariana. Pela sua mão, homens como Thierry Sabine e José Megre conheceram o interior profundo do deserto e levaram a sua paixão ao extremo de eles próprios levarem consigo outros aventureiros. José Mégre conheceu Mano numa viagem ao Téneré e manteve uma amizade próxima com este, que durou até à morte do tuaregue, num acidente de avião. Foi por acompanhar as viagens e expedições de José Megre com uma certa regularidade, que me interessei por Mano Dayak e pela causa tuaregue, pela qual nutri e nutro uma grande simpatia.

Mas dizia que há coincidências: nunca o tinha feito, nem sabia que havia, mas esta manhã encontrei por casualidade a homepage de José Megre, quando procurava uma informação sobre a cordilheira do Atlas, porta de entrada no deserto marroquino. E na entrada, a notícia de que José Megre faleceu em 21 de Fevereiro último, ou seja, na madrugada seguinte à noite em que escrevi o post sobre Mano Dayak. Obviamente, outra coincidência: exactamente 25 anos depois da morte do meu avô. Quando parte a próxima caravana para Tombuctu?

27 de fevereiro de 2009

The Kite Runner (O Menino de Cabul)

The Kite Runner

Esta manhã, e como é habital na casa do treinador do Sporting, a mulher do PAULO BENTO diz:
-Acorda Paulo que já são 6.
-O quê? Já marcaram outro?
Jheza é bela, muito bela. A sua beleza só é comparável ao som da sua voz quando desliza até ao poço de água equilibrando o cântaro no alto da cabeça. O rosto jovem é de uma simplicidade desconcertante e ao fim do dia parece-me que se alonga como se procurasse diluir-se nas sombras do entardecer. Os olhos negros parecem-me duas pedras preciosas pelo brilho que deles irradia. O branco que os rodeia ainda é imaculado e quando fala, mesmo sem perceber o que diz, bebo as suas palavras, uma por uma, tentando em vão descodificar as sílabas. Por vezes tenho a sensação que se me dirige. A sua voz perdura no ar mesmo quando fica silenciosa e a sua presença flutua até mim quando se ausenta, deixando para trás, impressas no solo empoeirado, as marcas dos seus pés delicados.
Partiu para Sul dois dias antes de eu próprio sair da cidade, acompanhando os do seu povo para o grande mercado anual de Bamako. Sei que a verei todos os dias até ao fim da minha vida, há rostos que não se esquecem na eternidade de uma vida.
Jheza é bela, muito bela. A sua pele, de um tom ébano claro, é lisa. Por vezes, quando inclina o rosto para trás, este ilumina-se ainda mais, batido pelo sol; nesses instantes, quase lhe sinto a respiração e o bater do coração e se me olha, o seu sorriso branco invade-me e fico preso na curva fina dos seus lábios, até que estes se cerram e então volto a concentrar-me no brilho dos olhos, que uma leve tristeza não consegue apagar em nenhuma circunstância.
Quando o vento se levanta e o deserto parece querer aterrar em Tombuctu com estrépito, Jheza começa a cantar pausadamente uma canção milenar. E então dá-se um milagre ou apenas uma mera coincidência que a minha imaginação alimenta: a tempestade passa, a luz do dia regressa e os habitantes do bairro começam a reconstruir as suas casas ainda antes de os últimos remoinhos abandonarem a cidade despertando um gato ocasional do torpor a que regressara, estendido ao sol. Pediu-me que nunca a fotografasse.
Road to forty

25 de fevereiro de 2009


upampoganikeysofalodentu
Encho-me de pena
upampo yena lokajozename
pena do vazio
ogakyena ogaratinga ammanshinshonkarinsi
que me enfada
amakyena upanpoganike popyentyi
tampurave
Enfada-me o eco que o vento traz
pogyentima vermeziloke shinonka
do casco do cavalo batendo na pedra
temp temp temp shiniy vokapu
Há já três luas
amkyena upampoganike tampurave
popyenyi
enche-me de pena o eco do vazio
das pessoas
.
O Pensador de Tombuctu

20 de fevereiro de 2009

Mano Dayak


A voz de Dayak, ou Mano, entre os seus, no deserto ou na Sorbonne. A voz é quase tudo quanto me lembro dele. Pausada, detida, como o sussuro do vento nas dunas de areia escaldante e vermelha no crepúsculo. Não guardei nenhuma fotografia do momento, nem me recordo se cheguei a tirar alguma, mas quis crer sempre que o Sol nunca se poria sobre a sua África e que teria por isso uma próxima oportunidade antes de o tempo que o levou se despenhar. Imaginar ainda hoje a voz de Mano a percorrer as planícies do Níger, rodopiando na copa das raras árvores, pausada, serena como o orvalho na noite do país Dogon, evaporando-se nos grãos de areia no romper de cada manhã, é algo que perdura no adolescente que deixei de ser quando apenas lia sobre si. A voz segura de Mano, comandando as caravas do Teneré, desviando-as do seu caminho para deixar uma pétala de rosa do deserto junto da árvore de Sabine, ajoelhar-se e verter uma lágrima, partindo em seguida enxaguando as faces macilentas com as costas da mão negra e áspera que liderou um povo na tragédia silenciosa da ausência de uma nação, é algo que fica. A lenda confunde-se com mil relatos e livros lidos. E vão 15 anos desde um breve encontro em Portalegre.

16 de fevereiro de 2009

Alguém tinha sido atropelado na estrada e o motorista nem sequer tinha parado. A pouco e pouco foi-se juntando uma multidão em torno do cadáver, de modo que sob a canícula do meio-dia a atmosfera rapidamente se tornou irrespirável, mesmo antes da chegada das moscas e dos cães, atraídos pelo odor do sangue espalhado pela berma da estrada. Procurei, por isso, refúgio entre as prateleiras de uma taberna próxima, onde as garrafas acumulavam o pó da estrada que serpenteava pelo deserto adentro, rumo a cidade das caravanas. Os rótulos confundiam-se com o poeira e no interior das garrafas tanto podia haver Southern Comfort como mijo de dromedário, pelo que não arrisquei. No canto da sala havia um mestiço que se ria segurando uma lata de cerveja quente e ao lado uma espingarda pronta a cuspir a sua lei.
Ignorei-o por pouco tempo:
- Um copo de aguardente para o branco - ouvi nas minhas costas.
Voltei-me e agradeci, mas apontei para a chaleira que fervia no fogão rudimentar.
- A nossa aguardente não te agrada? provocou.
Escolhi cautelosamente as palavras acenando com a cabeça lá para fora:
- Quem é o morto?
- Carne! respondeu com os olhos vermelhos de sangue. E nem sequer presta para comer
- Há testemunhas? - perguntei.
- Que importa isso? Não há justiça nesta terra, a não ser esta - disse, enquanto alongava os dois canos sobre o colo.
Fez-me sinal para que me sentasse ao seu lado.
- Estás longe do teu caminho, branco. Que procuras?
- A estrada para Tombuctu.
- Estás longe dela.
- Esta estrada não vai dar a Tombuctu?
Por instantes pareceu dormitar:
- Todas as estradas vão para Tombuctu, as pessoas é que ficam pelo caminho. Há gerações que é assim, não sei o que vão lá fazer que não possam fazer aqui.
Acenou ao empregado, que prontamente lhe trouxe uma garrafa e dois copos.
- Bebe um copo para o caminho, branco, a viagem é longa e a estrada tem demasiada poeira para quem não está habituado ao pó das patas dos camelos. Conselho de amigo.
Sem uma pausa, bebeu o copo de um trago e ergueu-se como pôde, cambalenado até à porta, onde se esgueirou tropegamente entre as raras sombras da ainda curta tarde.
Vários dias depois, em Kenenkou, na continuação da Elyne Road, oitocentos quilómetros a Sul de Tombuctu, percebi o que me dissera o mestiço, naquele breve encontro, acerca da carne humana.
Road to forty.

7 de fevereiro de 2009

Ainda sobre o timbre da cor

Ainda regressando ao tema do timbre da cor: os instrumentos de corda maxime o violino e um bom piano serão porventura os que melhor expressam a ideia subjacente ao timbre da cor, ou se preferirmos, à tonalidade do som da nota. De resto, poucos compositores conseguiram expressar tão bem a ideia do timbre da cor quanto Vivaldi. Mas será efectivamente assim? E se é, porque o é? Igor Stravinsky referiu à saciedade que Antonio Vivaldi não escreveu quinhentos concertos, mas sim quinhentas vezes o mesmo concerto. Terá o compositor russo algum tipo de razão? Seja como for, a expressão ganhou força e Antonio Vivaldi caiu em desgraça no dealbar do Séc. XX, e só recentemente foi reabilitado nos círculos mais eruditos. Mas Vivaldi foi de facto um génio? Serão os seus concertos uma monótona repetição, ou uma fantástica variação do modo, uma ténue variação do tom, do timbre que faz a diferença? Será tal variação suficiente para permitir a catalogação da peça como algo novo?
Como qualquer peça, o leque de interpretações permitidas é que muitas vezes define a respectiva riqueza da obra. E no campo da interpretação, Vivaldi é riquíssimo na amplitude de interpretações, de variações, de timbres, que a sua composição permite. E porque será assim?
Provavelmente não haverá apenas uma resposta, mas Vivaldi teve a sorte de viver no período mágico do apogeu dos Stradivarius. e tais instrumentos foram determinantes para a sua obra. Há já algum tempo que me debruço sobre esta matéria, pelo enigma que representa. Há cerca de três anos li um artigo escrito por Joseph Nagyvary, um hungaro, especialista em bioquímica, radicado nos Estados Unidos, no qual relatava que através da análise das cinzas de lascas de verniz de alguns dos melhores Stradivarius e tambéms dos Guarneris, chegou à conclusão que os mestre lutiers da época dourada dos violinos teriam trabalhado em estreita colaboração com os fabricantes de verniz locais de Veneza ou Cremona, por forma a elaborararem um verniz resistente aos insectos da madeira, uma praga comum na época. A análise da cinza do verniz permitiu isolar uma percentagem elevada de boro, que todavia não é suficiente para explicar tudo o que diga respeito à superior qualidade acústica dos violinos Stradivarius, pelo que o mistério permanece.
Após quase trinta anos de pesquisas, Nagyvary conseguiu produzir um violino capaz de ombrear com os mais fracos Stradivarius. Todavia, a primeira série de instrumentos de Stradivari mantém-se como a referência, o padrão (da cor) pelo qual afinam os demais violinos. Porque, tratando-se de um Stradivarius, dificilmente será igualado, pela extraordinária concorrência de factores que pode ter contribuído para o impressionante resultado final.
A obra de Vivaldi está irremediavelmente aliada à extraordinária qualidade dos Stradivarius, que, sem dúvida, beneficiaram, por sua vez, das teses de Giuseppe Tartini, a que já se fez aqui referência. Na tese principal de Tartini brilha a teoria do timbre médio (terzo suono), que sumariamente explica que na vibração sonora de um corpo existe uma diferença entre a tonalidade emitida pela vibração e aquilo que o nosso ouvido de facto percepciona. O que permite um leque enorme de afinações para os diversos instrumentos musicais, mas em particular para os instrumentos de corda. Sabendo isto, o executante de uma partitura poderá adaptar a afinação do instrumento ao ouvido da audiência, ou às condições acústicas do ambiente em que a peça é executada. No lado da composição, a música poderá incluir vibrações/variações de tonalidade discretas em que as notas sobem ou descem décimas de tom dentro de um mesmo tempo de compasso, enriquecendo extraordinariamente a música, se houver um executante com uma sensibilidade fora do comum para a realizar. Por comparação, dir-se-á o mesmo de uma pintura monocromática, não necessariamente minimalista por isso, mas na qual ou da qual se pode extrair uma riqueza que uma mistura obstinada de cores não consegue traduzir.
Voltando ao tema, o principal obstáculo que Stravinsly porventura teve ao apreciar a obra de Vivaldi terá sido a diferença de estilos; enquanto Stravinsky é um precursor da realidade musical contemporânea, Vivaldi representa por sua vez a musicalidadade clássica, sendo porventura o primeiro compositor monocromático, estilo particularmente evidente n' As Quatro Estações. O seu portanto a seu dono.

29 de janeiro de 2009

Água de Janeiro

Climas, de Nuri Bilge Ceylan

Em Janeiro
um lírio à beira do caminho
serpenteante entre as falésias
desperta-me os sentidos
Ouço bem uma voz
a tua voz ecoando
errando pelo tempo
dividida pela neblina
que cobre os canaviais
baloiçando
Triste
é assim que a escuto
ainda hoje
por vezes quase-muda
nas copas das árvores
esqueléticas
uma folha tombando aliquando
a anunciar a morte perfeita
de outro dia
Ao entardecer
por vezes
recordo os olhos que deitavas para o largo
onde a espuma das vagas se forma
antes de adormecer na areia húmida da maré vasa
As tuas palavras
costumavam formar-se nesses instantes
brotando do silêncio dos teus lábios
eram a minha alma nesses dias
em que o teu rosto se iluminava com a chegada da lua
Íamos
embalados pelas vozes do vento vagabundo
cujas sílabas eram o sentimento puro
e o calor
que no rigor da estação
tornavam o Inverno
um lugar distante
e a chuva que caía
água fora do tempo.

27 de janeiro de 2009

[Freeport]

Já muito se disse acerca do caso Freeport de Alcochete. Já muito se disse acerca de um processo que veio a lume há cerca de quatro anos e no qual se sugeria que o Primeiro-Ministro pudesse estar envolvido. Já muitos se indignaram pela questão de fundo, já se ouviram na praça pública várias opiniões acerca do assunto e a Presidência do Conselho de Ministros, através de Pedro da Silva Pereira, veio explicar a visão da governação acerca do assunto em entrevista a Mário Crespo. As televisões já entrevistaram o tio, o primo, o Smith e o Pedro, não tenho a certeza se a empregada doméstica e a dona do café habitualmente frequentado por cada um deles, penso que até o porta-voz do Grupo de Forcados Amadores de Alcochete já deu o seu bitaite e um importante contributo para o pluralismo opinativo. Penso, pois, que não falta mais ninguém. Mas o que ainda não consegui perceber, nem penso que tenha sido explicado - e isso preocupa-me enquanto cidadão - foi porque motivo é que uma investigação que aparentemente está em curso há pelo menos quatro anos e no qual existe o nome de um Primeiro-Ministro envolvido ainda não produziu qualquer conclusão, acusação, ou despacho de arquivamento. Como é possível que José Sócrates tenha passado por um mandato inteiro sem saber o que estava ou está em causa e como é possível que vá passar por um novo período de campanha eleitoral nesta incerteza. É que, e isso é que é preocupante, significa uma de duas evidências: ou estamos perante uma inaceitável lentidão da investigação (sobretudo quando está em causa a estabilidade de um governo) e a consequente incompetência e laxismo de quem a dirige ou deveria dirigir, ou perante uma preocupante instrumentalização do processo-crime, que ficou adormecido para agora ser despertado num momento escolhido. Numa e noutra hipótese há, evidentemente, responsáveis a quem devem ser pedidas responsabilidades, a quem se deve exigir outro sentido de Estado, a quem o civismo não pode permitir o exercício de cargos que devem ser exercidos com imparcialidade e respeito. Já vai sendo tempo de se perceber que a lentidão e/ou a instrumentalização da justiça ferem profundamente o Estado de Direito, a cidadania e a Democracia. Qualquer cidadão tem direito à justiça (leia-se, a uma decisão) em tempo minimamente útil; obviamente, tratando-se de um membro de órgão de soberania, pela exposiçao mediática, desgaste e exemplo que representa, o cuidado tinha de ser maior, muito maior.
Não está, sublinhe-se, em causa, o conteúdo ou as motivações da decisão que conduziram ao despacho que permitiu a criação do empreendimento, nem nada de parecido. Está apenas em causa, apurar porque motivo a justiça não conseguiu reunir ou afastar a existência, em quatro anos, de qualquer indício de crime e, obviamente, identificar os responsáveis por esse atraso ou manipulação. E já agora, saber que razões determinaram o atraso ou que intenções estão por trás da manipulação da informação.

20 de janeiro de 2009

Resumo do vigésimo dia de Janeiro

chuva
acentuado arrefecimento nocturno
flores sopradas pelo vento
Sasha.
passos molhados
sorrisos de criança
azinho incandescente
noite serena
fogo segredado
tous les lits ouverts sur la mer
ou nous nous avons aimé

15 de janeiro de 2009

Esta noite
partirei
quando a lua tocar o teu rosto
e alongar a tua sombra sobre o lençol
O mar chama-me
Os meus passos perdem-se na areia
e na opacidade do mar
do tempo
O meu tempo
Esgota-se
nas rugas que sinto como sangue a pulsar
Esta noite
partirei
e as pétalas do girassol de pé
dentro do solitário
cairão
maciamente sobre o contador
sem arranhar a superfície
despedindo-se lentamente
como palavras
adormecendo.

In tempus praesens: Bach encontra Gubaídulina (II)

Perdoe-se a insistência na matéria, mas é impossível resistir. A gravação da Deutsche Grammophon reproduz dois concertos de Bach com os clássicos três andamentos em cada um deles, seguido do concerto composto por Sofia Gubaidulina, este último dividido em cinco partes.
Bebendo directamente de Bach, Gubaidolina estabelece contemporaneamente uma ponte entre o ocidente e o oriente, que é também uma ponte entre o passado e o presente, que se faz (também) com apoio directo no tema da fé, posto que a compositora russa é crente, embora ortodoxa. A composição In tempus praesens (o próprio título em latim invoca a contemporaneidade da peça e ainda a retrospectiva de uma antiguidade clássica) traz-nos por isso o peso da religiosidade, do combate entre a luz e as trevas ou as sombras, manifestadas estas pelo peso das tubas, trombones e contrabaixos nos acordes iniciais, os quais passam a alternar com a luz trazida pelos timbres mais altos e agudos dos violinos e dos violoncelos, que têm o seu expoente máximo no solo minimalista (divino?) interpretado por Anne-Sophie Mutter, que anuncia em êxtase o triunfo definitivo do bem e da luz sobre as trevas. Afinal, um tema caro em Bach (donde a importância da presença dos dois concertos que antecedem a peça de Sofia), que Gubaidulina assume por inteiro, "condenando-nos" à luz e a um destino próspero, sentença "inflingida" na última parte da peça.
O corolário expressa-se como o fresco na abóbada de uma catedral, traçando um arco de estrutura perfeita, onde a matéria musical se contém dentro de formas arquitectonicas delicadamente proporcionais e harmoniosas, de cores equilibradas.
No poema anterior procurámos expressar a ideia de esferas contidas sob um tecto, flutuando, como notas desafiando a gravidade de uma pauta, despertando a sensibilidade de quem as ouve. E pode muito bem ser esse o sentimento de quem ouve In tempus praesens, na certeza de que a luz triunfa... sempre?

12 de janeiro de 2009


Foto: Dee Caffari, onboard Aviva, Sudoeste do Cabo Horn

I am a nimbus
a metallic nimbus chained to a space
of spheres and clouds
that rains crystal waters
and defies the gravity of a true heart
with a grain of light
to a common destiny.

6 de janeiro de 2009

Folheando uns poemas antigos
com palavras semeadas
desconjuntadas
como ervas meio rapadas
Arrepio-me
e sinto o frio da estação
o corpo submerso
num mar que não se vê
que ninguém sabe ver
Encolho os ombros
e enquanto os jardins hibernam
e os pássaros migram
instala-se progressivamente o inverno da memória.

Eric Sevlak, Time after Time

À meia-noite em ponto o trem de aterragem do vôo RY 2354 proveniente de Barcelona tocou suavemente o novo asfalto da pista do aeroporto de Sevilha, como se o piloto tivesse tido o máximo cuidado para não perturbar o sono de alguns dos passageiros que dormitavam na penumbra da cabine. Quando a porta exterior se abriu, o cheiro da humidade da terra da planície andaluza penetrou no habitáculo, estimulando os sentidos de Consuelo.




Enquanto aguardava que Richard recuperasse as bagagens de ambos, Consuelo olhou distraidamente em volta, evitando pensar nas luzes fluorescentes e amareladas da zona de chegadas. Percorreu devagar a nave e reparou num jornal esquecido num trolley de bagagens, relatando as últimas notícias do dia

"Polícia continua sem pistas quanto aos autores do atentado contra o prédio em Sevilha"

Na primeira página do jornal, uma fotografia de Javier Falcón de óculos escuros perscrutando pela enésima vez os escombros em frente a uma tenda de campanha instalada pela Protecção Civil, cujos membros trajavam de branco, protegidos por máscaras equipadas com filtros de ar. Consuelo levou instintivamente a mão ao bolso do casaco, de onde retirou o telefone, no qual digitou apressadamente um número, aguardando ansiosamente pela voz do interlocutor. Nesse preciso instante Richard chegou, chamando-a ao seu encontro, empurrando o carro com as malas de ambos. Consuelo desligou o telefone sem se certificar que a chamada tivesse sido atendida

- Estou preocupada, a ama não atende, importas-te de me deixar em casa, Richard? Desculpa...

O inglês puxou-a para si, abraçando-a ao mesmo tempo que sorria afavelmente, encaminhando-se em seguida para o exterior, dirigindo-se para um táxi na fila próxima. Já na avenida de Kansas City, o odor das laranjeiras invadiu o habitáculo, mas só mais tarde Consuelo Jimenez o notou, concetrada que estava em encontrar a melhor forma de se despedir de Richard sem o magoar e sobretudo sem ter de lhe explicar que não queria que ele estivesse ao seu lado nessa noite. Sobretudo não nessa noite em que não queria misturar a perfeição aparente das duas noites anteriores, com o perfeito isolamento de que carecia então. Por isso o tacto da pele de Richard lhe pareceu insuportável quando lhe tentouu segurar na mão, por isso o cheiro dos seus cabelos, tão impecavelmeten lavados lhe pareceram insuportável. despediu-se como pôde, com a pressa de um artista que escolhe sem tempo as cores da tela que pinta num túnel de metro antes da chegada iminente da polícia. Sem o beijar, mas agradecendo delicadamente, com uma delicadeza criadora de distância, os dois dias maravilhosos que haviam passado juntos.

- Posso ligar-te amanhã?

- Sim, claro que sim, estarei cedo no Asador, depois de deixar as crianças na escola.

- Almoçamos?

- Sim, mas combinamos amanhã - respondeu Consuelo, na esperança de conseguir encontrar uma forma de se esgueirar.

E saiu do táxi beje, percorrendo num passo rápido a distância até à entrada do luxuoso bloco de apartamentos onde residia. Enquanto isso, Javier Falcón adormecia junto ao fogão da cozinha, com a mão direita descansando sobre a arma poisada nas suas coxas.