26 de agosto de 2008

- Nunca devemos chorar, Clara. Nunca devemos chorar, em circunstância alguma - disse Xavier, enquanto olhava distraído em redor. Ambos estavam sentados numa mesa discreta da esplanada do café e as suas palavras como que reflectiam o tom ocre da pintura da parede e o céu de Arles ao cair da tarde. Clara olhou-o em silêncio, sem responder. Mas dentro de si a resposta era de profundo desacordo. Xavier pressentiu e mudou o rumo da conversa, mas o silêncio de Clara permaneceu, como o de um animal emboscado preparando uma investida.

Tinham passado os três dias, três meses e três anos anteriores em busca de uma pista que os levasse até Erik Sevlak, mas Arles, para onde todos os caminhos convergiam até então, parecia ser agora o final da pista:
- Estou exausta Xavier. O teu Sevlak desapareceu e tenho dúvidas que alguma vez tenha existido. Acho que alguém se divertiu a escrever um livro, não gostou ou não gostaram do que escreveu e portanto limitou-se a desaparecer.
- Não tens razão Clara. Estamos perto e sinto-o.
- Estás perto Xavier, eu não consigo nem quero continuar mais a procurar o teu Sevlak...
- Meu Sevlak?!
- O teu Sevlak Xavier.
O tom de voz de Clara indiciava claramente o que se passava dentro de si. Xavier sentia-o, mas Clara transmitira-lhe confiança no projecto comum e pela primeira vez assumia abertamente que não o era. Xavier recuou:
- Entendo Clara. Desculpa, não tinha percebido.
Clara permaneceu calada. Xavier tentou mudar o rumo da conversa, mas sem sucesso. Ao jantar falaram pouco. Na noite anterior passearam pelas ruínas romanas da cidade, Xavier recordava-se de como se tinham rido dele a imitar Hércules no anfiteatro. Recordou o sorriso de Clara durante a peça improvisada. E em seguida o seu ar sério quando o olhava enquanto ele se distraía com um detalhe de uma inscrição num capitel. E a forma como desviara o olhar do seu, afundando as mãos nos bolsos do casaco enquanto se afastava uns passos, mirando o rio. Recordou como colocara o seu braço por cima dos ombros de Clara e como ela se aconchegou a si ao mesmo tempo que esquivava o olhar. E durante o jantar da véspera, da forma como o olhara profundamente e lhe dissera quero fazer amor contigo esta noite, Xavier. Não, quero antes foder contigo esta noite, Xavier. Nunca o dissera assim:
- Esta noite quero ser a maior puta que jamais passou pela tua cama Xavier, quero que me fodas como nunca o fizeste com ninguém. Depois do jantar passearam por Arles, a temperatura descera e do rio elevava-se uma fina neblina que se depositava entre as malhas dos agasalhos do casal, cobrindo-os de gotículas de orvalho.
-Amo-te muito, Xavier Dias.
-E eu a ti, Clara.
Repetiram-no vezes sem conta nessa noite.
Xavier recordou como se despiram apressadamente na chegada ao quarto, sem terem tido tempo de acender a luz. Como Clara depois o afastou, vestindo o roupão branco, abriu a porta da varanda e pisou o chão de pedra debruçando-se sobre o balcão que deitava para a rua. Lembrou-se do vapor de água que exalava da sua boca na contraluz do candeeiro incrustado na parede do prédio vizinho e como cada detalhe desses nela o fascinava. Nesse instante Clara voltou-se e abriu ligeiramente o roupão, deixando cair o cinto e expondo sedutoramente a sua nudez perfeita. Xavier aproximou-se e encostou-lhe o rosto, puxando a nuca de Clara de encontro ao seu ombro, inalando o perfume da sua pele. Abraçou-a.
-Agora Xavier. Quero ser a tua fêmea! Libertou-se do seu abraço e caminhou provocadoramente pela laje de pedra, penetrando no quarto batido pelo luar. Deixou cair o roupão e estendeu-se de pernas entreabertas em cima da colcha puxada para trás. Então Xavier? Este seguiu-a, ergueu-se sobre o leito e colocou um joelho entre as coxas de Clara, enquanto a olhava fixamente nos olhos. Depositou-lhe um beijo nos lábios finos e deslizou o rosto até ao umbigo exposto. Inspirou o irresistível perfume próximo que lhe chegava e entregou-se num longo beijo, com o rosto apertado entre as coxas de Clara.
.
Mas agora, nessa noite, Clara e Xavier eram os únicos clientes do Café Terrace Van Gogh em Arles. Nunca devemos chorar, Clara. Xavier tomara a decisão de propor a antecipação da partida de Arles dentro de dois dias e procurava as palavras certas para transmitir a ideia a Clara, dando-lhe a liberdade de partir. Alguém que passava distraidamente na rua, olhou para o casal e repetiu o olhar na direcção de Clara antes de retomar o passo. Passou em seguida um casal apressado sem se deter e depois disso o empregado perguntou se queriam pedir algo antes de trazer a conta. Clara rechaçou-o: desculpe interromper menina, volto daqui a pouco, respondeu o empregado e retirou-se. E um violinista. Que parou na rua, retirou o violino de dentro do estojo forrado de veludo escarlate, fez uma vénia, alojou o violino por baixo do longo queixo e começou a tocar o instrumento, empurrando o estojo aberto com o pé para perto do casal, por forma a permitir que nele depositassem uma moeda. Il Trillo del Diavolo. Xavier procurou um par de moedas e esticou-se na cadeira para alcançar a abertura do estojo. Nesse instante reparou numa pequena placa negra com letras douradas, cravada junto da pega, com uma inscrição quase apagada: "Sevlak".

21 de agosto de 2008

Marginal


[um deslize entre capítulos]

Dizia-te do rumorejar constante
das vagas batendo na areia
enquanto me perguntavas pelo amor
na ânsia de classificares
cada gesto meu
sem perceberes
que um e outro
são indiferentemente a mesma coisa
como olhar repetidamente para as manchas de um plátano
a amarelecer no outono
ou o maquinal deslizar do eléctrico amarelo
pelos carris molhados da marginal
até Algés
com o olhar preso nos teus joelhos.

Consciencializo por fim:
enquanto categorizavas assertivamente
o amor
envenenando a tua própria alma,
tricotando reticências e sombras
numa fria dansa de palavras
cores e odores
tocando em surdina
retalhos traçados
ao compasso de uma valsa,
morreste silenciosamente
na tragédia de não saberes
que morrias quando me matavas.
[esboço para composição de fado a acompanhar por kora]

20 de agosto de 2008

Primavera de Praga foi esmagada há 40 anos...


... por sete mil tanques soviéticos, na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968. Os títulos desta manhã em Praga, contudo, preferem apontar baterias para Pequim. A capa do Lidové Noviny é um exemplo disso mesmo, mas o Dnes ou o Hospodárské Noviny alinham pelo mesmo diapasão. O destaque deste último vai mesmo para as novas moedas de euro da República Checa.

13 de agosto de 2008

Álbum de Ricardo Ribeiro com Abou-Khalil considerado um dos dez melhores do mundo

O álbum gravado em conjunto pelo fadista Ricardo Ribeiro e pelo libanês Rabih Abou-Khalil, com o título "Em Português", foi considerado um dos dez melhores do mundo (top of the world) na categoria world music, pela revista britânica especialista no género, Songlines (a lista inclui ainda outro álbum em língua porutuguesa, do brasileiro Seu Jorge, intitulado America Brasil). Recorde-se que há dias Ricardo e Abou-Khalil interpretaram músicas do album num concerto em Lisboa, no CCB. Editado pela Enja Records, "Em Português" conjuga a música do libanês com poemas originais de José Luís Gordo, Mário Raínho, Rui Manuel, António Rocha e Tiago Torres da Silva.

A Songlines diz, acerca de Ricardo Ribeiro, que é uma rising star of fado, referindo sobre o estilo musical do álbum que
this isn’t fado music, or remotely Portuguese in character, although Ribeiro’s rich, distinctive voice and the beauty of the poetry leave us in no doubt as to where its heart lies. Abou-Khalil’s music is rarely Arabic in any traditional sense, but through these songs he has clearly found common ground between the melancholic passion of Andalusian muwashshahat and Portuguese saudade, the wistful longing that suffuses fado. The instrumental accompaniment of oud, accordion, bass and percussion subtly weave around the voice and, for such a small ensemble, provide a remarkably broad palette of colours. The lyrics have been specially written by contemporary Portuguese writers, with the exception of ‘Casa da Mariquinhas’, a verse made famous by Alfredo Marceneiro.
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Já o diário britânico The Guardian refere, acerca de "Em Português" que Abou-Khalil is one of those magicians who can always pull something out of the hat. His rhythmic sensibilities support Ribeiro with a propulsion that wraps fado's sensibilities around a robust spine. It's acoustic, but the backline of US drummer Jarrod Cagwin and French tuba phenomenon Michel Godard (also on bass and serpent) gives some numbers a Led Zeppelin twist - a kind of heavy precious metal. Abou-Khalil's settings have a spirited tunefulness and a Moorish, Mediterranean flavour that recalls Radio Tarifa.
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Aqui, uma entrevista de Luís Rei a Abou-Khalil, onde este além de estabelecer um paralelo curioso entre Portugal e o Líbano, revela que neste país existe um sentimento muito semelhante à nossa saudade, que ali chamam taraab. Algo que é intraduzível porquanto tem de ser sentido. Já relativamente ao álbum e à mistura de culturas, afirma que relativamente aos músicos com quem tenho trabalhado, muitas vezes as pessoas podem dizer que é interessante o diálogo entre o piano e o alaúde, que é interessante como o fado interage com a música árabe. Não. É o Ricardo que interage com a minha música. É o Joachim que trabalha comigo. Não é uma questão de misturar culturas. Nós temos de ter portas entre as paredes que existem sempre entre as culturas. Não temos de saltar o muro, não podemos ficar em ambos os lados, mas há sempre portas pelas quais entramos. Pessoas como o Joachim e o Ricardo são portas para outras culturas. Podemo-nos encontrar sem partir muros, todos mantém a sua cultura original e encontramos coisas novas para dizer. [...] Se quiseres trabalhar com um projecto destes não podes pensar em termos regionais, não podes ter uma ideia e tentar concretizá-la. É a pessoa que oiço, que conheço, que me dá a ideia para novos projectos. Se me perguntares o que me atrai mais, digo-te que são músicos muito enraizados na sua tradição musical. Não quero quebrar a sua tradição. Quero trabalhar com eles tal como trabalho com a minha música, com a minha cultura árabe. Mas há-que esquecer isso, porque isso já existe.
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Para terminar, sugere-se uma visita à lista de trabalhos publicados por Abou-Khalil pela Enja Records, sendo que alguns dos trabalhos dos álbuns Songs for a Sad Woman, Journey to The Center of an Egg, Visions of Music, entre outros, podem ser ouvidos no My Space do autor. O libanês e Ricardo Ribeiro voltam a encontrar-se em 31 de Outubro, num recital nas Caldas da Rainha.

11 de agosto de 2008

7 de agosto de 2008

Javier Falcón chegou a casa muito depois das três da manhã. Jantara com Toumani Diabaté depois do recital que este dera nos Reales Alcazáres. Javier chegara cedo ao local do espectáculo, tivera oportunidade de cumprimentar o seu amigo de infância à chegada deste, numa caleche aberta, e depois entrara pelos pátios frescos, percorrendo as salas embalado pelo som da água que brotava das fontes espalhadas pelo interior, ressoando nos azulejos do período al-andaluz que revestiam as paredes do edifício. Havia vinte anos qe Toumani não tocava a solo e de certa forma este era um regresso às origens, que cumpria coincidindo com o lançamento de um novo álbum musical. Javier ouvira-o várias vezes a tocar a kora, mas desta vez ficou arrepiado quando o instrumento começara a soar nas paredes do velho palácio, prolongando-se e estendendo-se para o exterior na preguiçosa noite de Sevilha, empurrando as ocasionais notas de um desprevenido flamenco de bairro. À saída Javier cruzou-se com Consuelo Jímenez, trocaram olhares, ela sorriu exuberantemente na sua direcção e apertou o braço ao seu acompanhante. Javier admirou o vestido encarnado e justo que lhe cingia a cintura e o longo cabelo preso no alto da cabeça com uma rosa, perdendo-a logo de vista enquanto era apertado na pequena multidão que saía do palácio, desaguando na praça exterior.

Toumani resgatou-o quando ia começar a pensar no breve encontro, acenando-lhe da caleche que aguardava na praça sobranceira aos Reales Alcazares, separando-os da imponente Catedral. Javier subiu o degrau, transpôs a porta aberta e encolheu-se no assento, incomodado com a visibilidade que o carro aberto lhe dava ao lado do artista. A sua camisa azul clara pareceu-lhe demasiado berrante, mesmo ao lado da comprida túnica colorida de Toumani. O calechero estimulou a parelha de animais a iniciar a marcha e seguiu rapidamente na direcção indicada, enquanto pela primeira vez os dois amigos trocaram mais do que algumas palavras de circunstância:
- Então meu velho? - arrancou Toumani.
- Foste óptimo, rapaz, como sempre. Confesso que fiquei surpreendido...
-Deixa-te disso. Fala-me antes de ti.
- Não há muito para contar – disse Javier – pelo menos desde a morte do meu pai que tudo tem andado na mesma, tu sabes, as coisas triviais, as partilhas, as coisas familiares, o trabalho, nada de especial...
-Não me digas uma coisa dessas – atalhou o maliano, evitando entrar nas questões pessoais de Javier. Estava ao corrente do escândalo que envolvera o seu pai, Francisco Falcón e conhecia bem as irmãs de Javier para adivinhar em que tipo de problemas estaria o amigo metido no que tocaria às partlhas. Sabia igualmente do atentado de há dias e da morte de Agnes. Acompanhara o amigo à distância quando se separaram e fora seu confidente a espaços.
- Há desenvolvimentos no caso do homicídio de Agnes, Javier? Ouvi dizer que o marido está preso e é suspeito...
- Sim, mas estamos a estudar outras possibilidades. Pessoalmente não creio que tivesse sido ele.
- Que hipóteses há?

Javier fez sinal de não poder falar no assunto dado o estado da investigação e ambos se calaram por instantes. A temperatura refrescara e a noite estava agradável. A caleche deslizava agora pela Avenida de la Constitución sob o ondular suave das folhas das palmeiras. Acelerou pela Puerta de Jerez e depois de cruzar o Paseo de las Delicias, atravessou o Guadalquivir pela Puente de San Telmo, detendo-se num dos típicos engarrafamentos nocturnos em Triana. Instantes mais tarde, ambos jantavam frente a frente:

- Sabes Javier? Não auguro nada de bom para os tempos mais próximos.
- Como assim? - perguntou Javier.
- Estamos a morrer Javier. África está a morrer lentamente. A definhar...
- Mas não está há séculos?
- Sim, mas nunca esteve neste ponto. As pessoas estão desesperadas Javier. Não têm comi da para dar aos filhos, às mulheres, aos velhos. Aldeias inteiras devastadas pela fome, pela seca, pelas pragas e pelas epidemias. E agora, o custo dos alimentos. As pessoas matam por comida. Em alguns lugares, se tens uma saca de farinha és rico e poderoso. No mês passado, no Níger, um homem abriu um poço para dar de beber aos seus animais. Uma aldeia foi-lhe bater à porta e mudou-se para as suas terras. Mais duas se lhe juntaram e o homem de repente ficou com um pequeno exército disposto a dar a vida por ele.

Javier concordou. A Europa não fazia ideia do que se passava, atordoada com os seus próprios problemas. Ele vira o desespero nos olhos desta gente junto ao arame das cercas dos campos de refugiados de Ceuta e Melilla. Os que andavam por Sevilha, pelas raras sombras de Sevilha vendendo objectos e não só. Venderiam a própria alma se pudessem. O músico continuou:

- É gente desesperada Javier. Tu vê-los na rua. Aqui. Em Madrid, mas estão em toda a parte. São sombras. Ninguém os suporta, mas eles, a minha gente, veio para ficar, pelo menos enquanto África não for viável. A Europa tornou-se asséptica, fecha-se e procura manter-se limpa, ou limita-se a fechar os olhos ao que se passa a Sul, imitando os Estados Unidos. E enquanto isso, gente sem escrúpulos arma esta gente, dá-lhes um saco de milho por semana e uma espingarda e forma-se um pequeno exército que se ramifica por toda a parte, para qualquer fim. E com a vantagem de qualquer coisa que se faça ser sempre culpa da Al-Qaeda ou da ETA.
- Mas a ETA e a Al-Qaeda continuam a ser perigos reais, não?
- Sim, mas hoje aproveitam-se destas estruturas para exporem menos os seus efectivos, com a mesma ou maior eficácia. Repara, que hoje basta dizeres a um desses desgraçados que encontras na rua que garantes o acesso à água da sua família sedenta lá longe, na Guiné ou no Níger caso ele aqui te faça um trabalhinho...
- Entendo – pronunciou Javier, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha, vendo o alcance das palavras do seu amigo.
- Nenhuma estrutura, nenhuma pessoa, está a coberto desta realidade Javier. A tua mulher a dias, a ama que trata dos vossos filhos, o motorista do presidente da Telefónica, ninguém sabe de onde vieram, quem são os seus familiares, e quão permeáveis estão a este tipo de submissão. Repara que hoje não basta que enviem dinheiro para os seus familiares, há lugares em que o dinheiro de pouco serve, ou então é preciso muito mais dinheiro do que aquele que lhes enviam. Entendes?

Javier desviou o olhar discretamente na direcção de um casal africano bem vestido que jantava na mesa ao lado e acenou afirmativamente para o amigo.

- E – continuou o maliano – isso sente-se em todos os campos. Há dias, num concerto em Amesterdão, a Bjork dizia-me que sente o mesmo e olha que ela é islandesa. Mas consegue ver, Javier, porque está de fora da vossa União Europeia, faz parte de uma minoria e sente na pele alguns dos problemas da “boa velha Europa” porque defende o direito à diferença. Bom, mas chega deste assunto. Brindemos. Continuas sozinho?
- Sim..
- Estás a dizer-me que desde Agnes não houve mais ninguém?
- Houve, mas não resultou – disse Javier e pegou no copo.
- Não resultou? Explica-me isso melhor, meu velho.
- Não resultou, Toumani. Ritmos diferentes de vida, falta de planos, sonhos, expectativas goradas, desilusões, essas coisas que fazem fracassar uma relação, sei lá. Enfim, adiante. Olha tens ido a Tan-Tan Plage?

O maliano não insistiu:

- Nunca regressei Tan-Tan Plage. Lembras-te Javier?
- Lembro-me imensas vezes de Tan-Tan Plage, Toumani. De como a vida era despreocupada.
- Para nós Javier, para ti e para mim. O teu pai era um pintor bem sucedido e o meu era um músico. Apesar de ter falecido cedo, deixou-nos algum conforto e a minha mãe beneficiou de um certo estatuto. Mas concordo que a vida era bem mais fácil naquele tempo.
- Lembras-te naquele ano em que fomos para a estrada, de madrugada, para vermos passar os carros do Dakar?
- O rali Paris-Dakar?
- Sim.
- Estás a falar daquele ano em que eras o único branco do grupo e resolveste passar cinza de fogueira na pele e excrementos de ovelha no cabelo para pareceres um negro?
- Sim
- Nesse ano os carros não passaram Javier.
- Não passaram?
- Esperámos duratnte horas e nunca passaram. Foram horas na estrada, mas nesse ano a Frente Polisário ameaçou a segurança do rali e a organização desviou o percurso. Creio que estás antes a falar daquele ano em que toquei numa das etapas e tu foste visitar-me. Em Bamako, no acampamento fora da cidade, na Elayne Road. Há trinta anos Javier...
- É verdade. O tempo...
- ...voa Javier.
- Definitivamente. Creio que são horas de irmos Toumani. O dia amanhã vai ser longo
- Sim, vamos – disse o músico colocando-se de pé num gesto apenas – mas recorda-te Javier: conduz as tuas investigações nunca descartando o que te disse esta noite. Mesmo na investigação da morte de Agnes.
- Achas que...?
- Não acho nada Javier, não faço ideia do que se passou e em todo o caso seriam apenas boatos.
- Que boatos?
- Nada de concreto Javier, mas sugiro-te que verifiques a lista de casos que Agnes tinha em mãos.
- Assim farei, Toumani. Obrigado pela sugestão.

Os dois amigos despediram-se com um aperto de mão caloroso seguido de um abraço selando a amizade de ambos com um sorriso franco, após o que se separaram. Javier caminhou um pouco ainda pela rua e depois tomou um táxi que o deixou em casa. Pelo caminho recebeu um sms de Pablo Blanco: “Identificámos o proprietário da Berlingo branca estacionada na garagem de Agnes. É de Córdoba. Amanhã falamos.”

6 de agosto de 2008

Elyne Road


You may have heard of the legend
about the wizard on the road to Bamako
Elayne Road they say:
there's an old man sitting under a tree
sometimes he is silent
and sometimes he speaks
or plays the kora
while keeping an extinguished smoking pipe
in his lips
tobbaccoless the pipe
and wordless the lips

Under the tree lies the entire wisdom of Africa
at twilight lions arrive
and roar
and vultures soar
in search of their preys
and life becomes wild
when the grey shadows and the moonlight
slowly become dominant queens of the savannah
but the old man stands still under the tree

He is a scholar
and owns the wisdom of Africa
the endless stories of ancient tribes
sitting
under a specific tree
on the road to Bamako.
Elayne Road they say
sometimes the man is silent
sometimes he speaks
and sometimes he plays
a twenty four stringed kora.



Toumani Diabaté
Cantelowes, The Mandé Variations
Sevilha, Janeiro 2008

1 de agosto de 2008


CCB 4

No CCB começam hoje três dias de bons concertos (dois deles à borla). Hoje, é dia do nigeriano Tony Allen, um dos melhores especialistas em african-beat da actualidade (tocou ao lado de Fela Kuti). Amanhã é a vez do maliano (novamente o Mali) Toumani Diabate, um criativo no uso da kora na fusão entre a música do seu país e o jazz/blues e, por fim, no Domingo, Eliades Ochoa, o ex-membro dos Buena Vista Social Club, um dos melhores intépretes da música cubana. A fechar, ainda no Domingo, Ricardo Ribeiro, uma das esperanças lusas para o fado actua ao lado do libanês Rabih Abou-Khalil, no que pode ser uma surpreendente conjugação de estilos.