31 de dezembro de 2007

Feliz Ano Novo

New Year's day, U2, live @ Slane Castle

L' intolérance

Em dias como o de hoje, regressamos a livros já passados, apenas avivados pela memória. Longe, apenas as passagens mais marcantes nos chegam em ecos distantes. Assim hoje, pela manhã, "Escalas do Levante" (1996), romance do libanês Amin Maalouf, jornalista, escritor, ensaísta. E daí, para o excelente ensaio "Identidades Assassinas" (1998) - porque motivo, na história da humanidade, a afirmação de si próprio segue tantas vezes de par com a negação do outro? - do mesmo autor. De leitura obrigatória, nos tempos actuais, de cólera, indignação, intolerância e barbárie. Mas também, próprio para a entrada num novo ano.
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Amin Maalouf é um homem do Oriente, mas simultaneamente do Ocidente (vive em França). Desloca-se amiúde pelas cidades que foram escala na passagem de viajantes entre o Ocidente e o Oriente (como Constantinopla, Alexandria, Beirute), locais que atingiram o esplendor máximo e o declínio, com todas as consequências negativas para as pessoas que as habitavam em cada época histórica. Amin Maalouf possui uma visão rara e abrangente sobre o conflito entre duas culturas tão próximas e tão distantes, mas sobretudo alerta para o perigo da cultura presente da tribo global, da hegemonia de uma cultura dominantes face às demais e dos perigos que os radicalismos defensivos face tal hegemonia podem gerar.
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Duas frases do livro o resumem:
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En somme, chacun d’entre nous est dépositaire de deux héritages : l’un «vertical» lui vient de ses ancêtres, des traditions de son peuple, de sa communauté religieuse; l’autre, «horizontal» lui vient de son époque, de ses contemporains. C’est ce dernier qui est, me semble-t-il, le plus déterminant, et il le devient un peu plus encore chaque jour ; pourtant, cette réalité ne se reflète pas dans notre perception de nous-mêmes. Ce n’est pas de l’héritage «horizontal» que nous nous réclamons, mais de l’autre. »

28 de dezembro de 2007

Les Trois Couleurs

Zbigniew Preisner é polaco. Como Krzystof Kieslowski. Este realizador de cinema, aquele compositor. Por sinal, ambos dos mais talentosos da actualidade. Ambos se associaram várias vezes até à morte prematura de Kieslowski, em 1996. Ambos assinaram obras-primas, em separado e em conjunto. "Les Marionettes", reproduzida no post anterior, é apenas uma das músicas da banda sonora de "La Double Vie de Véronique". Kieslowski realizou o filme, Preisner compôs a banda sonora.
Mas há mais, muito mais: "O Decálogo" e "Três Cores: Azul", por exemplo. Em todas as obras, mas sobretudo no "Azul", a banda sonora de Preisner é parte instrínseca da obra de Kieslowski, embala o espectador, ganha intemporalidade. Os sentimentos das personagens e a história acompanham toda a banda sonora; uns e outros são sempre muito intensos, quase em demasia, mas nunca se roça, sequer, o mau gosto ou a vulgaridade. Antes pelo contrário. Em Kieslowski isso é muito raro.
"Azul" é uma obra densa, de recolhimento, de vida, de morte, de pós-morte, da serenidade encarcerada no acto interior do perdão. É uma obra centrada nos momento cruciais da vida, (nascimento, morte...), no seu questionamento, na sua instantaneidade, prolongamento, banalidade até. E há ainda Juliette Binoche, talvez no melhor papel da sua vida.
Os últimos sete minutos do filme, onde se perpetuam e confundem as cores singulares de Binoche, Kieslowski e Preisner.


Bleu, 1993, de Krzysztof Kieslowski, com Juliette Binoche e Benoit Regent

Les Marionettes

Zbigniew Preisner, 1991, La Double Vie de Véronique

27 de dezembro de 2007

Les Petits Oiseaux


Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.
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EA

19 de dezembro de 2007

Les Inconscients

tinham tudo
menos a
consciência disso

José Carlos Barros



Les Misérables

homeless leilana sitting against trash can on sidewalk. she had just been in a fight so her eyes are swollen. sleeps in the park, which she's done since coming to san francisco 8 years ago. she got here by hitching from east coast; doing "whatever" to make a buck along the way. she has a few raw sores on her face mostly hidden by her hair. i've seen her around for a while now, usually sitting huddled somewhere staring at nothing. i worried she might have some mental / emotional problems from how she acted, but talking to her, she seems fine. but she's clearly weary and has moments where the thoughts and memories going through her head seem to chill her thoroughly. she says she's trying to take a vacation from fucking herself up.
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Tom Stone é um fotógrafo nascido num comboio em marcha nos arredores da Cidade do México. Gosta de fotografar gente nas franjas da sociedade, gente no limite - ou para além - da sua própria dignidade. É ainda novo, mas enquadra-se muito na linha de Sebastião Salgado.
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"To my thinking, the original human trauma is our separation. We are too close not to need each other; and too far to trust each other. We rely on dubious senses and clever devices to interact; but we are alone in our thoughts. Lonely, insecure and uncertain; we pair, we group, we associate. We try to belong and we seek to exclude. We form bonds by geography, religion, economy and otherwise. But it is all precarious. We come together and we drive apart.
[...]
But is there really no connection there? Does such fate – whether choice or circumstance – speak nothing of us? Tell me we do more than advance in place; with so many left behind. Or promise me we can do better. Say we can reflect ourselves; us and them... That we can see the ways we overlap and distinguish the ways we grow apart. And pledge that we can learn; to fit all of our misshapes; to reward value beyond charity and beyond the marketplace; to be better to each other; to be better ourselves. And promise me it could be a better world. Or tell me we are at our best."
Tom Stone

18 de dezembro de 2007

Um exemplo

Há dias perguntavas. Se sou triste. Fiquei a pensar. Ainda há pouco. Novamente nisso. Creio que o exemplo te esclarece: dias antes, numa das avenidas da cidade, um semáforo encarnado. Uma prostituta, casaco escuro de punhos e gola coçados a descerem ao encontro de umas botas brancas, a dar pelo joelho. O verde, encavalitado na primeira mudança, a mandar-me seguir. E eu a não querer, mas a buzina atrás a empurrar-me. Estavas distraída com a conversa e provavelmente nem reparaste que. No semáforo seguinte eu tinha ficado lá atrás, a olhar para aquela mulher. Para lá das suas botas. Para a sua história possível. A caminho de uma felicidade que apenas consigo imaginar, porque o contrário me recuso a aceitar e na qual necessito de acreditar. E no entanto a dignidade. Mesmo ali havia dignidade, perante os imprompérios dos transeuntes, adolescentes, ébrios que não ouvi mas adivinhei. O respeito dos bêbados pelas putas da cidade. Podia ter passado, indiferente, ou virar a cara para o outro lado. Como tantos. Mas fiquei por instantes naquele semáforo e só te apanhei novamente no seguinte, quando a tua mão me tocou levemente no joelho e a tua boca me perguntou "Em que pensas?".
É isto, percebes? Gosto de mim assim.

Joyeux Noël (cinema)

Esta noite, no Cine-clube de Olhão:
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FELIZ NATAL
No original: Joyeux Noël, de Christian Carion
Elenco: Diane Kruger, Benno Fürmann, Guillaume Canet, Gary Lewis, Lucas Belvaux
Ano: 2005 / 115 min / Drama / Guerra / França / Alemanha / RU / Bélgica / Roménia
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O filme inspira-se numa história verídica que aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, na noite de Natal de 1914, em vários sítios da frente de batalha. Quando a guerra rebenta no Verão de 1914, surpreende e arrasta milhões de homens no seu turbilhão. E o Natal chega, com a neve e as prendas das famílias e dos Estados-Maiores.
Nessa noite, um acontecimento notável vai mudar para sempre o destino de 4 personagens: um padre escocês, um tenente francês, um tenor alemão e uma soprano dinamarquesa, estrelas da época que, nessa noite de Natal de 1914, se vão encontrar no meio de uma confraternização sem precedentes entre soldados alemães, franceses e britânicos. Vão deixar a espingarda no fundo das trincheiras para irem ter com quem está do outro lado, apertar-lhe a mão, trocar cigarros e chocolate, desejar "Feliz Natal!"
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Nomeado para Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares de 2006.

Art invisible

Anésia Manjate, "Passaste por Aqui", Maputo, 2006

Anésia Manjate é uma artista moçambicana contemporânea. Participou na última ARCO - Feira Internacional de Arte Contemporânea, em Madrid. Faz parte de uma nova geração de artistas moçambicanos que se vêm destacando graças à cooperação internacional. "Art invisible", editado na última ARCO, é um dos volumes de um conjunto de três dedicados a Moçambique, Angola e Mali, com o objectivo de divulgar artistas inovadores inseridos no movimento artístico contemporâneo africano. Anésia é uma dessas artistas. No trabalho de Anésia, destaque-se o aproveitamento dos mais simples objectos quotidianos, cujo valor normalmente nos escapa.

17 de dezembro de 2007

Tanghetto - o novo tango

Havia a cozinha. Agora há o tango de fusão. Os Tanghetto, grupo argentino de Buenos Aires, reinterpretaram o tango original do ghetto nas margens do Rio de la Plata, misturaram-no com música electrónica (samplers, sintetizadores e mesas de mistura incluídas) e o resultado é a síntese da sensualidade do tango com os beats da dance and house music. No te niegues a lo nuevo, vieja alma tanguera. Nem toda a gente gostará, mas o resultado, do ponto de vista técnico, é dos mais conseguidos que vi recentemente. Ritmo complexo, síncopado, execução perfeita, o melhor da essência de dois estilos musicais radicalmente diferentes, cuja associação resulta na perfeição. E com margem para evoluir, porque estamos a falar de gente que sabe de música. O tango é um pensamento triste que se pode dançar? (Enrique Discépolo). Confesso que fico com as minhas dúvidas depois de ouvir este tango electrónico, ou neotango, como se lhe prefira chamar.


Tanghetto, 'El Deseo', ao vivo em Buenos Aires

16 de dezembro de 2007

Uma tarde: esta tarde. O muito que perguntar. O muito que descobrir. A confortável lassidão dos membros percorre-me enquanto olho pela janela, distendendo-me como a longa migração dos rouxinóis. As palavras que se paralisam na garganta enquanto mordemos a voz: quanto tempo é que ficas?
A inevitabilidade:
Toda a Terra. Todo o Mar. Um só destino.

13 de dezembro de 2007

Palavras

No meu caso, as palavras sempre foram uma luta pela liberdade. Contra a força da gravidade, o peso, tudo aquilo que me puxava para baixo. Faço. Por isso questão: que raramente toquem a realidade, ou se quiserem: o chão. Por isso as deixo flutuar, suspensas no ar, mesmo quando as uso seguras por elásticos de forma a que tenham um espaço limitado de criativa liberdade individual em relação ao texto a que as prendo. Odeio ser normativo no uso das palavras, desde a sua génese no meu interior mais profundo. Por vezes, "sou como os outros", noutra vezes, "apenas eu", opostos que se enfrentam de forma violenta, com variações de humor. Por vezes, nuvens. As palavras, mas também lâminas de gume afiado. As palavras que uso são substituíveis. Quase sempre podem ser substituídas. Não raras vezes regresso a um texto e excluo palavras que me pareceram a um tempo: perfeitas. Perfeitas. Que perfeição há numa palavra que nos parece pesada a um dado tempo? E que direito tenho de achar pesada uma palavra que escolhi empregar? de a colher e simplesmente degredar ou banir? As palavras: ondas perdidas, folhas de árvores, flores recém-colhidas, secas. Nunca sabemos. Onde nascem. Onde vivem. Onde morrem. E morrem. Morrem, sim. As palavras são entes da natureza e daí vem a sua perigosa perversão. Por isso vivo agora longe das palavras, num mundo que excede os limites do pessoal. Do geográfico. Da ficção putativa. De irresistível liberdade. Sem fantasmas. Sem receios. Sem dores não partilhadas. Com plena maturidade.

12 de dezembro de 2007

Um caminho

Daqui parte um caminho. Por enquanto de areia fina, como poeira do deserto, soprada pelo vento dos primeiros frios outonais. Segue junto ao rio, por toda a parte, perde-se nos campos verdejantes, volatiliza-se nos arrozais, entre o vôo das garças, lá, onde o rio já não é navegável nem é rio. Continua para além dos laranjais, por entre as árvores em flor, pelo mundo fora.
A tarde muda, numa morosa intensidade, como se fosse o espelho da minha alma. Quietude. Uma ave plana. Palpitante, no meu íntimo, na minha infinita tranquilidade. O silêncio existe. Nos meus pensamentos, só a lua tarda em nascer. Mas são apenas. Palavras. Palavras. Palavras. Não, não é tudo o que resta. Encontro nisto tudo uma beleza, um sentido. Nenhum orgulho. Orgulho. Orgulho. Não estou agitado, não estou ansioso. Pelo dia de amanhã. És tu quem me quer, és tu quem me atravessa, tu. Só tu. Adulta, agora adulta. És tu que me penetras com o teu olhar, me colocas as mãos nos ombros e me lês um poema de AdaNegri. Não sinto agora peso, nem vertigem, nem loucura. Adoro a vida. Nada perdi, nem um ruído de corações, nem uma luz, nem um desejo. Dispo-te lentamente, a cada beijo.

10 de dezembro de 2007

Silêncios

Vinha há pouco a pensar nisso. Não foi apenas a minha vontade que me fez ir ao seu encontro, mas também a minha falta de vontade, a minha crónica indecisão. Mas o certo é que mesmo no silêncio daquela tarde fui capaz de encontrar a sua voz apaziguadora, confortável e sincera. No seu rosto, no seu olhar, um sorriso capaz de suportar o mundo e iluminar o recôndito mais remoto da minha alma. Conseguiu, facilmente, encontrar formas de entrar em mim, profundamente dentro de mim, na minha infinita dimensão temporal. E ocupar um espaço tremendamente vazio cuja existência eu próprio desconhecia. Limpar o meu passado, o meu presente e apontar-me um futuro. Ainda que nesse instante eu não o tivesse de imediato entendido.

9 de dezembro de 2007

O mar era a morte. Ou o amor incondicional.

(adaptado de José Luís Peixoto)

8 de dezembro de 2007

A verdade, como o silêncio, existe apenas onde não estou. O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa luta, abrem rasgões de sangue dentro de mim. Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso. Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos. Intocado e intocável. Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta. É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade.
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José Luís Peixoto